Revirando papéis encontrei uma lista datada de mais de dez anos, contendo aproximadamente vinte nomes. Nela reconheci várias pessoas que hoje muitos reconhecem como gente de bem, que ao longo desses anos alcançaram equilíbrio em suas relações pessoais e familiares, e conseguiram notório reconhecimento profissional. Uma parcela mínima de nomes, entretanto, me chamou a atenção por se tratar de pessoas que vi, ao longo da mesma década, envolvidas com a prática de crimes, desajustes familiares e desapego às boas práticas de vida.
Na data em que assinaram a lista todos haviam comparecido a um evento na mesma situação: menores infratores que por imposição do Poder Judiciário freqüentavam um ciclo de palestras desenvolvido pelo Rotary Club da cidade onde eu residia.
Fiquei algum tempo meditando sobre os motivos pelos quais, muitos anos depois, a grande maioria daqueles adolescentes teriam encontrado o rumo certo da vida, enquanto alguns poucos não souberam trilhar o mesmo caminho. Enquanto vaticinava sobre esses desencontros, me deparei com uma notícia na imprensa, realçada pela fotografia de um jovem contido por força policial. A manchete o identificava como o ‘maior’ dentre os delinqüentes locais e o texto dizia tratar-se de criminoso contumaz, conhecido das autoridades desde a adolescência.
Não há como deixar de reconhecer que tanto em relação ao destino do cidadão execrado no noticiário policialesco, quanto o daquela minoria contida na minha lista, as instituições públicas e privadas falharam fragorosamente.
Explico propondo um raciocínio lógico. Você, cidadão de bem, que nunca se viu envolvido em delitos de qualquer natureza, já se perguntou por que ainda não matou alguém? Por que ainda não assaltou um banco ou cometeu estupro? Qualquer pessoa poderia responder a tais indagações dizendo que não cometeu crimes por que a lei proíbe. Mas essa não é a resposta correta, pois ninguém deixa de roubar ou matar em face da proibição legal. Do mesmo modo, ninguém sairia por aí estuprando ou praticando assaltos caso a lei fosse revogada.
As leis, segundo o Professor Paulo Queiroz, são instrumentos retóricos que criam no imaginário social a ilusão de que os problemas foram ou estão sendo resolvidos: mas de nada valem se não existirem mecanismos reais de efetivação. O que nos impede de cometer crimes, portanto, não é a lei, e sim, as motivações humanas, os valores pessoais, que podem ser emocionais, psicológicos, morais, culturais, religiosos, econômicos, etc. E todos sabemos que estes motivos, em face da gritante complexidade que os cerca, não são passíveis de controle pela letra fria da lei.
A simples existência de leis – por mais graves que sejam as conseqüências fixadas para o seu descumprimento – não basta para controlar, orientar, socializar, recuperar e, enfim, direcionar as pessoas para o bem. Nem mesmo para aqueles que foram punidos por seu descumprimento a aplicação da lei basta para assegurar-lhes o reingresso ao convívio social, pois os fatores necessários para a ressocialização do condenado são outros, que, infelizmente, diante da realidade existente no país, não estão ao alcance do Estado, a quem compete a tarefa de recuperação e reinserção social dos condenados.
Os mecanismos reais de efetivação mencionados por Paulo Queiroz, não podem se limitar à atuação procedimental que compete ao Ministério Público e ao Poder Judiciário. A lei penal se diz ‘preventiva’, busca incentivar o cidadão a não descumpri-la, mas a construção deste ser durante a etapa que antecede a possibilidade de uma prática criminosa depende da atuação de instituições que lidam com valores pessoais, como a família, a escola e todos os demais grupos de convivência social. Compete-lhes fazer com que cada um compreenda o significado de seus atos, os limites toleráveis de convivência e as conseqüências dos comportamentos inadequados. Por isso, quanto maior a consistência dos valores pessoais transmitidos a crianças e adolescentes, menor a probabilidade de delinqüência no futuro.
Para Nietzche, o que chamamos de justiça não é outra coisa senão uma transformação do ressentimento, uma forma de vingança com nome diverso. Em sentido diverso, Ihering diz que o Direito não é uma simples idéia, é força viva. Ihering comparou a força do direito à força do amor, ou seja, ao sentimento: quando faltar o sentimento, o conhecimento e a inteligência não podem substituí-lo. Essa força deve ser direcionada de modo a garantir iguais possibilidades a todos. O cumprimento dessa missão compete a toda a sociedade organizada, que não pode fechar os olhos para a realidade, não pode fugir de suas obrigações. Se não envidarmos um mínimo de esforços para isso, fracassaremos em nossa missão de alcançar o bem e distribuí-lo a todos de forma igualitária.
O magistrado baiano Gerivaldo Alves Neiva abordou vários dos aspectos aqui comentados numa sentença proferida em 2008. Um cidadão de apenas 21 anos, surdo e mudo, sem escolaridade, sem profissão, foi preso e acusado de tentativa de furto por ter entrado de madrugada numa marmoraria. O Ministério Público pediu sua condenação por tratar-se de cidadão de vida pretérita voltada ao crime, desde quando, menor de idade, entrava em casas alheias e furtava roupas, pequenos objetos ou dinheiro. Apesar de diversas vezes encaminhado para escolas, órgãos e instituições, nenhuma foi capaz de auxiliá-lo. Apesar de ter provado durante o processo que tomava remédio controlado, que no dia dos fatos alguns amigos lhe haviam dado cachaça e ele, desorientado, entrara no local por engano, a acusação pediu sua condenação a uma pena de 2 a 8 anos de prisão. A correta aplicação da lei – acrescentava o acusador - representava o anseio de toda a comunidade, que sempre havia apontado o menor como futuro bandido.
Negando-se a atender o clamor popular de enviar o acusado para a lixeira humana que é a penitenciária, o juiz proferiu a seguinte decisão: “Nenhuma sã consciência pode afirmar que a solução para B.S.S. seja a penitenciária. Sendo como ela é, a penitenciária vai oferecer a B.S.S. tudo o que lhe foi negado na vida: escola, acompanhamento social, afeto e compreensão? Não. Com certeza, não! É o juiz entre a cruz e a espada. De um lado, a consciência, a fé cristã, a compreensão do mundo, a utopia da Justiça... Do outro lado, a Lei. Neste caso, prefiro a Justiça à Lei. Assim, B.S.S., apesar da Lei, não vou lhe mandar para a Penitenciária. Também não vou lhe absolver. Vou lhe mandar prestar um serviço à comunidade. Vou mandar que você, pessoalmente, em companhia de Oficial de Justiça desse Juízo e de sua mãe, entregue uma cópia dessa decisão, colhendo o ‘recebido’, a todos os órgãos públicos dessa cidade – Prefeitura, Câmara e Secretarias Municipais; a todas as associações civis dessa cidade – ONGs, clubes, sindicatos, CDL e maçonaria; a todas as Igrejas dessa cidade, de todas as confissões; ao Delegado de Polícia, ao Comandante da Polícia Militar e ao Presidente do Conselho de Segurança; a todos os órgãos de imprensa dessa cidade e a quem mais você quiser. Aproveite e peça a eles um emprego, uma vaga na escola para adultos e um acompanhamento especial. Depois, apresente ao Juiz a comprovação do cumprimento de sua pena e não roubes mais! Expeça-se o Alvará de Soltura”.
Não pretendo aqui pregar ou incentivar a impunidade. Todos devem responder pelas conseqüências de seus atos. O que me incomoda é saber que algumas pessoas, para não ver diante de si as misérias humanas, preferem furar os olhos.
“O verdadeiro Estado de Direito só pode existir quando a Justiça bradir a espada com a mesma habilidade com que manipula a balança” (Rudolf Von Ihering).
Pense nisso!