Contratos servem, especialmente, para instrumentalizar juridicamente determinadas operações econômicas, as quais são assim submetidas a um regramento específico, formal e sistematizado.
Esse conjunto de regras provem, em primeiro lugar, da própria lei que genericamente autoriza as partes a ajustarem os seus interesses de uma forma que, a princípio, deva ser livre.
Ocorre que essa liberdade — a regra — não é absoluta e se submete a determinados limites, impostos também pela lei, pelas normas de ordem pública e pelos chamados bons costumes, tal como definido de modo usual pela doutrina.
Nesse cenário se colocam, pois, os chamados princípios contratuais clássicos que dizem respeito à liberdade contratual em sentido estrito — que autoriza decidir com quem contratar, o que contratar e quando contratar, os efeitos relativos do contrato, abrangendo em geral —, mas acolhendo exceções — apenas as partes que dele participam, e a força obrigatória dos contratos, impondo aos partícipes do negócio o cumprimento integral e oportuno daquilo que foi ajustado, presumivelmente de modo livre e espontâneo.
Ocorre que, como já mencionado, há limites para o exercício dessa liberdade, sendo que, dentre eles, os mais evidentes e importantes são aqueles determinados pela própria lei. Essa é, de fato, a primeira barreira para que a chamada liberdade contratual seja considerada de um modo prevalentemente formal, e não, como deve ser, essencialmente material.
É o que ocorre, por exemplo, com as contratações feitas por empresas que detenham o monopólio sobre a distribuição de energia elétrica. Dada a posição que detêm frente aos consumidores, a hipotética autorização para que fosse feito o ajuste entre as partes sem a fixação prévia de quaisquer parâmetros levaria, inexoravelmente, à imposição de cláusulas abusivas em detrimento dos legítimos interesses da parte mais fraca na relação negocial. Uma tal situação facilitaria, de fato, a possibilidade de aplicação de reajustes abusivos, a realização de cortes de energia sem justa motivação, a ocorrência de atrasos injustificáveis na realização de reparos, a introdução de cláusulas isentando de indenização por defeitos causados por variações de voltagem etc.
Também sob outra perspectiva, a liberdade contratual, sob o seu perfil meramente formal, deve ser controlada. É o que ocorre quando há desequilíbrio evidente entre as partes contratantes, seja sob a ótica econômica, seja no tocante ao acesso às informações e ao conhecimento.
Neste campo estão as relações jurídicas derivadas dos contratos de trabalho, por exemplo.
Além disso, estariam nesse universo, igual e supostamente, as contratações típicas do Direito Agrário, representadas pelo arrendamento e pela parceira.
A respeito de tais contratações especiais, o legislador do Estatuto da Terra partiu de uma visão de mundo e fez dela surgir uma presunção absoluta. Sob o seu ponto de vista, o proprietário da terra seria, sempre e necessariamente, a parte privilegiada que, valendo-se de sua posição, poderia impor ao arrendatário ou ao parceiro outorgado, caso não fosse coibido pela própria lei, disposições abusivas e lesivas, estabelecidas sem uma justa e equânime negociação.
O conteúdo de tais hipotéticas possibilidades de abuso se concentrariam, principalmente, no prazo dos contratos agrários e nos valores a serem pagos ao dono da terra.
Quanto aos prazos, por exemplo, tem-se o artigo 95 do Estatuto da Terra, que, combinado com o artigo 21 do Decreto 59.566/1966, estabelece como sendo o mínimo admissível para a duração desses contratos o período de três anos.
Mas, além de outras questões, tais como, simplesmente, que as partes resolvam ajustar de outro modo porque assim efetivamente o desejam, como conciliar essa disposição com lavouras que não devam se repetir no mesmo local, dadas as suas características específicas, tais como a batata ou o tomate? Questões técnicas como essa não foram consideradas, até hoje, pela legislação vigente.
Ainda quanto ao prazo, há a previsão de renovação automática (artigo 95, incisos IV e V do Estatuto da Terra) do prazo de vigência contratual, a menos que seja o arrendatário notificado extrajudicialmente, com o prazo de seis meses e antecedência, da existência de outra proposta melhor do que a sua para a manutenção da avença, ou do interesse do proprietário de explorar o imóvel diretamente.
Também quanto ao preço, há limites máximos estabelecidos pelo Estatuto da Terra (artigo 95, inciso XII) e quanto à forma do pagamento, necessariamente em dinheiro ou no equivalente em produto (artigo 95, inciso XI, alínea “b”).
Essas são apenas algumas dentre as inúmeras cláusulas obrigatórias que restringem a livre negociação das partes na celebração de contratos agrários.
Tem sentido, contudo, regras com essa natureza?
Para que se responda a essa questão, devemos voltar os olhos, novamente, às operações econômicas realizadas e, em especial, acerca de quem as realiza.
Ao contrário do que foi a pressuposição do legislador na década de 1960, não se pode admitir como indiscutível a necessária coincidência entre o empresário não proprietário — o arrendatário ou o parceiro outorgado — e um hipossuficiente econômico.
De fato, se isso não era obrigatoriamente verdadeiro à época do surgimento do Estatuto da Terra, muito menos o é hoje.
De fato, quem são alguns dos grandes arrendatários no Brasil, atualmente? De modo incontroverso, usinas de açúcar e álcool, produtores de celulose, de suco de laranja e de soja, dentre outras lavouras.
Seriam essas grandes empresas e empresários hipossuficientes em relação aos proprietários de terras? Obviamente que não. Qual o sentido, pois, da manutenção de tais cláusulas obrigatórias, contidas na legislação em vigor, aplicável a todos os casos, sem qualquer mínima distinção a ser aplicada, de modo criterioso, entre os diversos personagens de tais relações jurídicas?
A lei, de fato, não distingue uns e outros. Poderia, então, o Poder Judiciário cumprir esse papel? O Superior Tribunal de Justiça entende que sim[1].
Creio, contudo, que essa jurisprudência criativa, a despeito de indicar um caminho que me parece correto, não autoriza que seja ele trilhado pelo juiz em detrimento do legislador.
A lei deve ser alterada, atualizada e, a partir daí, interpretada e aplicada.
Priorizemos, então, a mudança da lei, ao invés de buscarmos soluções alternativas e, em verdade, prescindíveis.
(Fernando Campos Scaff, professor da Faculdade de Direito da USP, advogado e árbitro).
(publicada na revista Consultor Jurídico - www.conjur.com.br).